Fatumbia narra a epopeia de um renascimento. Diante de uma realidade sem alma, onde o espírito está submetido à matéria, a humanidade escolhe erguer seu próprio mundo, tão denso e radiante que dissolve pouco a pouco o antigo.
O ato fundador consiste em transfigurar o próprio símbolo da grande ferida. O navio da história, símbolo da deportação e do sofrimento, metamorfoseia-se em O navio da Liberdade. Dessa inversão nasce um povo em marcha. Seus passos já não ressoam como os de sombras errantes, mas se encarnam em A marcha das lendas, cada passada extraindo da terra uma força nova.
Esse povo forja seu mundo nascente em aliança com o indomável. No rugido da cachoeira, eles reconhecem A força do destino, potência inalterável que anuncia sua vitória.
No silêncio das noites, já não oferecem apenas orações ao mar; recebem em retorno A oração do Oceano, Iemanjá que escuta seus filhos e os investe de sua imensa potência.

Esse mundo novo exige ser transmitido. A comunidade se contempla em O espelho da infância, reencontrando ali sua pureza primeira e a promessa de seu futuro. A iniciação do jovem dançarino transcende o simples ritual; ele se torna o receptáculo vivo dos Tambores do tempo, seu corpo vibrando em uníssono com séculos de história.
O arquiteto desse mundo novo não é outro senão O guardião do passado por vir, que mergulha na memória ancestral para desenhar o futuro, ensinando a arte secreta da metamorfose. Sob seu olhar, os iniciados aprendem a manifestar A cor do trovão, o raio sagrado de Xangô, e a encarnar O coração da tempestade, esse centro irredutível da renascença espiritual.

Aos poucos, a geografia do mundo novo se revela. Os caminhos da resistência são protegidos por Os muros do murmúrio; e quando a fé ousa sair da sombra, a própria rua transmuta-se em Templo da rua. No coração do santuário velam as guardiãs do saber invisível, As filhas dos segredos, protetoras desse mundo renascente.
O ponto de basculamento advém: o invisível atravessa o limiar do visível. É A passagem dos ancestrais — eles deixam de ser memória distante para caminhar ao lado dos vivos. Desde então, o cotidiano inteiro se transfigura: o mercado torna-se O cruzamento das eras, onde o comércio dos bens se mistura à troca das forças sagradas.
Enfim sobrevém o rito de passagem: A travessia dos mundos. O visível e o invisível já não estão separados; unem-se como as cordas de uma mesma tessitura.

Então aparece a luz última. O navio negro, espectro maldito das tratativas escravistas, jaz na margem como uma carcaça ressequida, vazia de poder, reduzida a um fantasma, aniquilada pelo mundo novo.
O casal que contempla essa epave não constata apenas a ruína do mundo antigo, mas a consagração do novo. Nesse espetáculo cumpre-se assim a obra última: A vitória do Espírito, triunfo da criação sobre a destruição, da liberdade sobre a opressão, da beleza sobre a violência, da potência da alma sobre a brutalidade da desumanização.

A epopeia de Fatumbia é também um espelho refletindo a vida de Fatumbi Verger, que, ao deixar a Europa burguesa para se perder nas ruas de Salvador e nas estradas da África, escolheu ele também construir um mundo novo.
Sua fotografia não era apenas figuração, mas transfiguração: adotado pelo povo de Salvador, acolhido no Candomblé, depois iniciado nos mistérios do Fá, foi não apenas testemunha, mas ator do vaivém entre os continentes.
Como O guardião do passado por vir, Fatumbi recolheu a memória dos antigos deportados, dos sacerdotes africanos, das mulheres da rua, dos mercados, dos templos distantes. Por sua obra, abriu A passagem dos ancestrais: suas imagens e escritos permitiram que uma memória enterrada voltasse a ser presença.
Em Fatumbi, a viagem se tornava novamente Travessia dos mundos: ele ligava a África e o Brasil, o visível e o invisível, a história e o sagrado. E através dele, esse mundo novo nascido de um olhar único se inscreveu não apenas na história universal, da arte e do conhecimento — como um testemunho fulgurante de A vitória do Espírito — e daquela irreprimível liberdade humana.


Fatumbia: la force du destin, ou la naissance d’un monde nouveau

Fatumbia raconte l’épopée d’une renaissance. Face à une réalité sans âme, où l'esprit est soumis à la matière, l'humanité choisit de bâtir un monde nouveau, si dense et si rayonnant qu’il dissout peu à peu l’ancien.

L'acte fondateur consiste à transfigurer le symbole même de la grande blessure. Le navire de l’histoire, symbole de la déportation et de la souffrance, se métamorphose en Le vaisseau de la Liberté (1). De ce retournement naît un peuple en marche. Ses pas ne résonnent plus comme ceux d'ombres errantes, mais s'incarnent dans La marche des légendes (2), chaque foulée puisant dans la terre une puissance nouvelle.

Ce peuple forge son monde naissant dans une alliance avec l'indomptable. Dans le grondement de la cascade, ils reconnaissent La force du destin (3), puissance inaltérable qui annonce leur victoire.

Dans le silence des nuits, ils n’offrent plus seulement des prières à la mer ; ils reçoivent en retour La prière de l’Océan (4), Yemanja qui entend ses enfants et les investit de sa puissance immense.

Ce monde nouveau exige d'être transmis. La communauté se contemple dans Le miroir de l'enfance (5), y retrouvant sa pureté première et la promesse de son avenir. L'initiation du jeune danseur transcende le simple rituel ; il devient le réceptacle vivant des Tambours du temps (6), son corps vibrant à l'unisson de siècles d'histoire.

L'architecte de ce monde nouveau n'est autre que Le gardien du passé à venir (7) qui puise dans la mémoire ancestrale pour dessiner l’avenir, enseignant l'art secret de la métamorphose. Sous son regard, les initiés apprennent à manifester La couleur du tonnerre (8), la foudre sacrée de Shangô, et à incarner Le cœur de la tempête (9), ce centre irréductible de la renaissance spirituelle.

Peu à peu, la géographie du monde nouveau se révèle. Les chemins de la résistance sont protégés par Les murs du murmure (10); et lorsque la foi ose sortir de l’ombre, l’espace urbain se transmute en Temple de la rue (11). Au coeur du sanctuaire veillent les gardiennes du savoir invisible, Les filles des secrets (12), protectrices de ce monde naissant.

Le point de bascule advient : l’invisible franchit le seuil du visible. C’est Le passage des ancêtres (13)— ils cessent d’être mémoire lointaine pour marcher aux côtés des vivants. Dès lors, le quotidien tout entier se transfigure : le marché devient Le carrefour des âges (14), où le commerce des biens se mêle à l’échange des forces sacrées.

Enfin survient le rite de passage : La traversée des mondes (15). Le visible et l’invisible ne sont plus séparés ; ils se nouent comme les cordes d’un même tissage.

Alors vient le dénouement. Le navire noir, spectre maudit des traites esclavagistes, gît sur le rivage tel une carcasse desséchée, vide de pouvoir, réduit à une ruine.

Le couple qui contemple cette épave ne constate pas seulement la ruine du monde ancien, mais la consécration du nouveau. Dans ce spectacle s'accomplit ainsi l'œuvre ultime : La victoire de l'Esprit (16), triomphe de la création sur la destruction, de la liberté sur l'oppression, de la beauté sur la violence, de la puissance de l'âme sur la brutalité de la déshumanisation.

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L'épopée de Fatumbia est aussi un miroir reflétant la vie de Fatumbi Verger, qui, en quittant l’Europe bourgeoise pour se perdre dans les rues de Bahia et sur les routes d’Afrique, choisit lui aussi de se bâtir un monde nouveau.

Sa photographie n’était pas seulement figuration, mais transfiguration : adopté par le peuple de Bahia, accueilli dans le Candomblé, initié aux mystères du Fa et docteur en Sorbonne, il fut non seulement témoin mais acteur du va-et-vient entre les continents.

Comme Le gardien du passé à venir, Fatumbi a recueilli la mémoire des anciens déportés, des prêtres africains, des femmes de la rue, des marchés, des temples éloignés. Par son œuvre, il a ouvert Le passage des ancêtres : ses images et ses écrits ont permis à une mémoire enfouie de redevenir présence.

En Fatumbi, le voyage redevenait Traversée des Mondes : il liait l’Afrique et le Brésil, le visible et l’invisible, l’histoire et le sacré. Et à travers lui, ce monde nouveau né d'un regard unique s’est inscrit non seulement dans l’histoire universelle, de l'art et de la connaissance — comme un témoignage éclatant de La victoire de l'Esprit - et celle de l'irréductible liberté humaine.


Fatumbia: the force of destiny, or the birth of a new world

Fatumbia tells the epic of a rebirth. Confronted with a soulless reality, where spirit is subjected to matter, humanity chooses to build a new world — one so dense and radiant that it gradually dissolves the old.

The founding act lies in the transfiguration of the very symbol of the great wound. The ship of history — emblem of deportation and suffering — transforms into The Vessel of Freedom (1). From this reversal, a people in motion is born. Their steps no longer echo like those of wandering shadows, but take form in The March of Legends (2), each stride drawing new strength from the earth.

This people forges its nascent world through an alliance with the indomitable. In the roar of the waterfall, they recognize The Force of Destiny (3), an inalterable power that heralds their victory.

In the silence of the nights, they no longer offer only prayers to the sea; they receive in return The Ocean’s Prayer (4), Yemanjá who hears her children and invests them with her immense power.

This new world demands transmission. The community contemplates itself in The Mirror of Childhood (5), rediscovering its original purity and the promise of its future. The initiation of the young dancer transcends mere ritual; he becomes the living vessel of The Drums of Time (6), his body resonating in unison with centuries of history.

The architect of this new world is none other than The Guardian of the past to come (7), who draws upon ancestral memory to design the future, teaching the secret art of metamorphosis. Under his gaze, the initiates learn to manifest The Color of Thunder (8) — the sacred lightning of Shango — and to embody The Heart of the Storm (9), the irreducible core of spiritual rebirth.

Gradually, the geography of this new world reveals itself. The paths of resistance are protected by The Walls of Whisper (10); and when faith dares to emerge from the shadows, the urban space transmutes into The Temple of the Street (11). At the heart of the sanctuary stand the guardians of invisible knowledge — The Daughters of Secrets (12), protectors of this nascent world.

Then comes the turning point: the invisible crosses into the visible. It is The Passage of the Ancestors (13) — they cease to be distant memory and begin to walk beside the living. From that moment, the entire fabric of daily life is transfigured: the market becomes The Crossroads of Ages (14), where the trade of goods merges with the exchange of sacred forces.

At last comes the rite of passage: The Crossing of Worlds (15). The visible and invisible are no longer separate; they intertwine like the cords of a single weave.

And then comes the denouement. The black ship — the cursed specter of the slave trade — lies upon the shore like a desiccated carcass, emptied of power, reduced to ruin. The couple gazing upon this wreck behold not only the collapse of the old world, but the consecration of the new. In that vision, the ultimate act is fulfilled: The Victory of the Spirit (16) — the triumph of creation over destruction, of freedom over oppression, of beauty over violence, of the power of the soul over the brutality of dehumanization.

The epic of Fatumbia is also a mirror reflecting the life of Fatumbi Verger — who, in leaving bourgeois Europe to lose himself in the streets of Bahia and along the roads of Africa, likewise chose to build a new world.

His photography was not merely representation, but transfiguration: adopted by the people of Bahia, embraced by Candomblé, initiated into the mysteries of Ifá, and awarded a doctorate from the Sorbonne, he was not only a witness but an active participant in the ongoing exchange between continents.

Like The Keeper of the Future Past, Fatumbi gathered the memories of the former deported, of African priests, of the women of the streets, the markets, and distant temples. Through his work, he opened The Passage of the Ancestors: his images and writings allowed a buried memory to become present once again.

In Fatumbi, the voyage itself became The Crossing of Worlds — linking Africa and Brazil, the visible and the invisible, history and the sacred. Through him, this new world — born from a singular gaze — inscribed itself not only in the universal history of art and knowledge, but as a luminous testament to The Victory of the Spirit — and to the irreducible freedom of humankind.

O navio da Liberdade (2025)